NOTA de 15 de outubro de 2019 – Ofício Nº 022/2019 – ADPJ. Brasília/DF

 

A Federação Nacional dos Delegados de Polícia Federal – Fenadepol – declara apoio à manifestação da ADPJ contida no Ofício Nº 022/2019 – ADPJ, datada de 15 de outubro de 2019, dirigida ao Excelentíssimo Presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia, acerca das atividades de Polícia Judiciária e do pernicioso Ciclo Completo de Polícia.
Ao Excelentíssimo Senhor – RODRIGO MAIA – Presidente da Câmara dos Deputados
NESTA
Senhor Presidente,
A Associação Nacional dos Delegados de Polícia Judiciária – ADPJ, entidade que congrega aproximadamente 8000 delegados de polícia de todo o Brasil, considerando o Ato da Presidência de 09 de outubro de 2019, por meio do qual foi constituída uma Comissão Especial para discutir a adoção, para todas as polícias da competência legal para investigação vem, por meio deste, apresentar algumas considerações importantes sobre a matéria, ou seja, eventual implantação do Ciclo Completo de Polícia.
No Brasil, o poder constituinte originário repartiu as competências institucionais da segurança pública (art. 144 da CF) por matéria (competências especiais, como da Polícia Federal, Rodoviária Federal e Ferroviária Federal) e por funções (polícia preventiva e repressiva). Assim, criou duas forças policiais repressivas, com competência constitucional para investigar, a Polícia Federal – com competências especiais – e as Polícias Civis – com competência residual, e 3 forças policiais preventivas, com competência para prevenir a pratica delituosa, as Polícias Rodoviária Federal e Ferroviária Federal – com competências especiais – e as Polícias Militares – com competência residual.
O Ciclo Completo de Polícia, defendido pelas forças policiais “preventivas” brasileiras, especialmente pelas Polícias Militares, sob as bençãos do Ministério Público, acaba com a divisão funcional de competências institucionais dos órgãos de Segurança Pública, estabelecida em nossa Carta Magna, permitindo, com isso, que uma mesma força policial seja competente para prevenir e investigar crimes comuns.
Inicialmente, cumpre destacarmos que a discussão do Ciclo Completo de Polícia não é nova, já tendo sido objeto de debate em 15 proposições legislativas (sob os mais diversos rótulos e estilos), sendo 13 delas propostas de emendas à constituição (PEC’s 124/99; 250, 276 e 291/2000; 181/2003; 7/2007; 266/2013; 324 e 431/2014; e 127/2015 originárias na Câmara dos Deputados; e 21/2005; 51/2013; e 131/2015 oriundas do Senado), que foram refutadas pelo Congresso Nacional, o que revela imediatamente tratar-se de tema controvertido e espinhoso, com considerável rejeição política.
Como é cediço, o discurso do Ciclo Completo de Polícia foi erigido, basicamente, sob o seguinte trinômio: 1) a polícia tem um funcionamento incompleto; 2) há um alto grau de burocracia e custo do trabalho policial; e 3) comparação aos modelos de outros países que adotam o ciclo completo, que merecem avaliação pontual e circunstanciada.
1. Argumento de que as Polícias têm funcionamento incompleto
O fundamento de que a “polícia tem um funcionamento incompleto” é apenas um diagnóstico feito sob a ótica dos interesses das forças preventivas, que não se sustenta sob o primado democrático do checksand balances (freios e contrapesos), pelo qual o poder soberano deve ter o seu exercício repartido por órgãos ou funções distintas e independentes de forma que um desses não possa agir sozinho sem ser limitado pelos outros. Tal princípio, teorizado por Montesquieu e John Locke, é fundamento para a existência de um Estado Democrático de Direito, como o conhecemos, sendo o seu afastamento o direcionamento para um Estado totalitário.
Nessa senda, foi concebido em nossa Carta Fundamental sistemas de Segurança Pública e Justiça Criminal exercidos por vários atores, que controlam as atividades uns dos outros por meio da repartição de funções próprias. Assim, à Polícia Militar compete prevenir o crime, à Polícia Civil reprimir (investigar) o crime, ao MP impulsionar a Ação Penal e ao Judiciário julgar as ações criminais. Desse modo, se pretendeu harmonizar esses sistemas, no qual o poder do Estado foi repartido em competências institucionais que se complementam.
Dessa forma, isolar as funções policiais, especialmente a investigação criminal, do sistema de persecução penal e dizer que a unificação das competências de prevenção e repressão criminal é a solução para as mazelas de todo o sistema é uma pretensão extravagante, que não se fundamenta na senda política ou racionalidade dos verdadeiros problemas dos sistemas de Segurança Pública e Justiça Criminal, ao qual estão inseridas, como restará ao final evidenciado.
1. Argumento de que há um alto grau de burocracia e o custo do trabalho policial
A retórica do “alto grau de burocracia e o custo do trabalho policial” é constantemente empregada pelos policiais militares e patrulheiros rodoviários para justificar o Ciclo Completo de polícia. Segundo esses atores a despesa com deslocamento para apresentar fatos criminosos às autoridades competentes (Delegado de Polícia Civil e/ou Federal) justificaria a não realização dos atos de controle de legalidade exercida pelos delegados de polícia, submetendo-os exclusivamente a controle diferido.
O que nunca foi evidenciado, quando de tais proposições legislativas, é quanto custaria aos cofres públicos incrementar atribuições a cada uma das polícias que passariam a exercer a integralidade do trabalho, pois isso nos parece importante no contexto da crise de austeridade econômica vivida. Sob o rótulo de busca por maior eficiência das instituições, as pretensões de melhoria salarial e de prestigio social vêm sendo mascaradas por corporações, mesmo que talvez não tenham compreendido estarem inseridos em um projeto perigoso de anarquização da segurança pública.
A repartição de funções públicas é feita precipuamente para gerar controle de atos de soberania do Estado de um órgão pelo outro, dentro do conceito de freios e contrapesos. A repartição de funções públicas tem como reflexo transverso, ainda, a especialização dos agentes públicos que permite a celeridade processual sistêmica.
Assim, é evidente que não é simplesmente a repartição de funções públicas o mal em si dos sistemas de Segurança Pública ou Justiça Criminal brasileiros, sendo consequência da aceitação dessa premissa como verdade a negação dos preceitos democráticos próprios à separação dos poderes.
Vale destacar que recentemente observamos atônitos no Brasil, em movimento similar ao observado na discussão do Ciclo Completo de polícia, o avanço do Ministério Público sobre competência própria das polícias repressivas (INVESTIGAÇÃO), no qual o fiscal da lei se arvorou de competência atribuída pelo constituinte a outros órgãos do sistema de Justiça Criminal (Polícias Civis e Federal) calcado no discurso de economia, celeridade e independência, argumentos semelhantes aos ora apresentados pelos militares.
Como consequência produziu-se um órgão (Ministério Público) com poderes de polícia e sem qualquer fiscalização externa, visto que esse órgão, fiscal da lei e da atividade policial, virou fiscal de si mesmo. Não se entende bem porque o Ministério Público se arvora como defensor do ciclo completo, como se o problema do acúmulo de processos no Poder Judiciário não fosse de sua alçada.
Só para esclarecer como é relevante esclarecer sobre esse acúmulo de ações penais no Poder Judiciário, insta frisar que, segundo o relatório Justiça em números do CNJ, “em 2017, ingressaram no Poder Judiciário 2,7 milhões de casos novos criminais, sendo 1,7 milhão (61,6%) na fase de conhecimento de 1o grau, 357,5 mil (13,1%) na fase de execução de 1o grau, 19,6 mil (0,7%) nas turmas recursais, 576 mil (21,1%) no 2o grau e 95,6 mil (3,5%) nos Tribunais Superiores”. A quantidade de processos criminais pendentes é maior do que a quantidade de processos novos que ingressam no Poder Judiciário, o que acaba produzindo, necessariamente, um acervo cada vez maior a ser vencido. Só para citar como exemplo disso, o TJSP possui 1.919.043 processos pendentes e (em 2017) teve mais 455.588 entradas (processos novos). Os números estão a indicar que, talvez, o gargalo mais relevante não seja os das Delegacias de Polícia, mas, sim, os de procedimentos já judicializados, o que, então, não deixa o Ministério Público em posição tão confortável. Imagine-se se o volume de investigações aumentarem (sem a qualidade necessária, inclusive), o que haverá senão o colapso do sistema judicial.
Desequilíbrios e argumentos retóricos nesse jaez devem ser combatidos pelos congressistas e ocorreu, no caso do empoderamento do MP, por se permitir que conceitos utilitaristas prevalecessem em face dos preceitos democráticos do checksand balances, tendo como sucedâneo notícias de abusos praticados por membros de um Ministério Público hipertrofiado e sem controle.
Assim, argumentos utilitaristas podem ser utilizados para desenvolver o aperfeiçoamento do sistema posto, mas a promoção de uma ruptura sistêmica, de forma açodada, como a proposta de Ciclo Completo de polícia pode nos colocar novamente nos trilhos da arbitrariedade, distantes do necessário controle de uma força hipertrofiada.
1. A comparação com os modelos de outros países que adotam o ciclo completo
Integra o discurso dos defensores do Ciclo Completo de Polícia no Brasil o argumento de que países com baixo índice de criminalidade, como Chile, França e EUA, adotam com sucesso modelos semelhantes. Para esclarecer melhor o tema, faz-se necessário apresentar o seguinte quadro comparativo:

 

Brasil

Chile

França

México

Tamanho

8.515.767 km2

756.950 km2

543.965 km2

1.958.201 km2

População

206 milhões

18 milhões

64 milhões

123 milhões

Renda per capita

$8,757

$13,653

$36,527

$10,021

Forma de Estado

Federação

Unitário

Unitário

Federação

Sistema de Governo

Presidencialismo

Presidencialismo

Semipresidencialismo

Presidencialismo

Grau de liberdade do regime político

78/100

94/100

90/100

63/100

A segurança pública nos EUA como paradigma merece um capítulo à parte em face das gritantes distorções em relação ao nosso. Merecendo ser citado que a Polícia é municipalista porque a tradição americana é municipalista (caucus e voto distrital). Ademais, lá a Polícia não é militarizada, mas, sim, uniformizada. A estrutura é típica de sobrelevo de locais onde as guardas municipais ganharam mais força do que as forças estaduais e federais. Lá não existe Delegado, mas existe o agente especial, o qual faz a mesma função. Existem mais de 20 mil agências policiais incumbidas de investigar, mas ainda assim tivemos o 11/09, o qual teria ocorrido por falta de centralidade na guarda de informações, vez que pode ter existido uma competição pela reserva de atribuições de tantas agências. Esse ponto é relevante, pois já antecipa os riscos de as corporações de ciclo completo (dotadas de idênticas atribuições) competirem por espaço e, no final, produzirem investigações cada vez mais pobres e, ipso facto, o crime organizado conseguir se enraizar ainda mais no Estado brasileiro.
Nos EUA, a política pública de enfrentamento com “tolerância zero” mais funcionou pelo endurecimento da atuação das corregedorias internas (evitando-se que os policiais corruptos tivessem guarida institucional) do que pelo famigerado ciclo completo, sendo que, no Brasil, tal linha de atuação correcional não estaria minimamente alinhada com o recente foro por prerrogativa de função dado aos Policiais Militares (nos termos da Lei n. 13.491/2017), o que lhes garante que, independentemente da infração penal que venham a praticar em serviço, sejam julgados somente pelas auditorias militares estaduais instaladas no Brasil, as quais são pouco mais de 10.
Por seu turno, o Chile, paradigma mais utilizado pelos defensores do ciclo completo, tem dimensões territoriais e populacional bem inferiores às brasileiras, uma forma de organização do Estado distinta (regime unitário) e renda per capita quase 2 vezes maior, revelando um ambiente social totalmente diverso do nosso.
O mesmo se observa em relação à França, com porção territorial 9 vezes menor que a nossa, população três vezes e meia menor e uma renda per capita quatro vezes e meia maior que a brasileira. Ostenta, ainda, um sistema de governo (semipresidencialismo) e uma forma de Estado (unitário) diferentes dos existentes no Brasil.
Por fim, observamos o México, talvez o país mais parecido com o Brasil, visto que é um Estado Federado, que vive sob um regime presidencialista, tem dimensões territoriais e populacionais pelo menos 2 vezes maiores que os outros paradigmas, e, o mais importante, condições sociais e de violência semelhantes. No México a polícia é de ciclo completo e essa característica não o afastou de altos índices de violência, pois enfrenta 33.000 mortes/ano. Repare-se que o Ministério Público tem, inclusive, um papel de centralidade na organização das investigações, o que indica que essa já deve ser uma possibilidade descartada a priori pelos congressistas brasileiros.
Outra informação omitida pelos defensores do ciclo completo de polícia é que em nenhum desses países existe sobreposição de competências entre forças policiais existentes, sendo a repartição das funções policiais estabelecidas ou por especialidade ou por território, evitando o caos e a perniciosa concorrência institucional, que é evitada em todo ente minimamente organizado.
Assim, no Chile existem 2 Polícias, os Carabineros e a Polícia de Investigação do Chile – PDI, ambas de ciclo completo, porém com competências materiais distintas, sendo a PDI semelhante à nossa Polícia Federal.
Na França existem 2 polícias, de ciclo completo, uma militar, a Gendarmaria, e outra civil, a Polícia Nacional, a primeira cuida do policiamento não urbano, de regiões com até 10000 habitantes, a Polícia Nacional tem como função o policiamento urbano (regiões com mais de 10000 habitantes). A divisão existe principalmente para o Estado ter alternativa em caso de paralização de uma das forças.
Tais informações implicam a consideração de aplicabilidade dos modelos sugeridos como paradigmas no Brasil e a repercussão nos sistemas de Segurança Pública e Justiça Criminal, com eventual caos decorrente da concorrência institucional.
No Brasil, observamos uma força Policial Militar avançando sobre as competências de polícia judiciária, própria das Polícias Civis, sem o menor pudor e sem encontrar qualquer freio do “fiscal da lei”. Nesse caso, o Ministério Público não se incomoda com a desobediência às repartição das funções públicas e tem mesmo estimulado publicamente o estabelecimento do Ciclo Completo de Polícia, tanto politicamente (https://www.conamp.org.br/pt/comunicacao/noticias/item/1949-ciclo-completo-de-policia-etema-de-reuniao-com-parlamentares.html), como de fato (http://www.mpdft.mp.br/portal/index.php/cmaras-de-coordenao-e-revisao-menu/549-recomendacoes-camaras-de-coordenacao-e-revisao/8389-recomendacao-camaras-57). Outrossim, a presença maciça de militares em grupos de atuação especial do Ministério Público é um presságio do plano estratégico que está sendo arquitetado nos bastidores.
Nesse cenário, vale a reflexão sobre a quem interessa uma instituição policial militar, que deveria estar patrulhando as ruas, realizando atos de polícia judiciária sob as bençãos do Ministério Público? Especialmente diante do quadro de falha das polícias militares em sua missão institucional?
Não há que se falar que a Polícia Militar vem fazendo um serviço de excelência em sua função institucional. Pelo contrário, a epidemia de violência revela que a Polícia Militar tem falhado em sua missão que é prevenir, o que lhes obriga a buscar reposicionamento institucional. Recente estudo, inclusive, indica que onde as guardas civis metropolitanas foram instituídas (de forma armada) houve redução da quantidade de crimes violentos, o que indica que a pulverização das atribuições das corporações policiais responsáveis exclusivamente pela prevenção ostensiva de crimes pode ir na contramão do que parece ser a solução mais adequada para o quadro atual da segurança pública brasileira[1].
Prova de que o dito ciclo completo é uma falácia é que cerca de 50% dos TCOs lavrados pela Polícia Militar versam sobre infração que sequer comina pena privativa de liberdade. Como se sustentar o rótulo de que essa intervenção pontual estaria evitando que infrações mais graves estejam sendo perpetradas? A significância de tal intervenção deveria justificar mais um trabalho de endurecimento (ou mesmo de abolicionismo penal) acerca do famigerado artigo 28 da Lei de Drogas, ao invés de ocupar a força policial ostensiva com tal mister. Contudo, como já dito, o rótulo de busca por maior eficiência parece ser só a justificativa formal para a migração institucional, porquanto, como visto, há muito tempo a Polícia Militar relegou a prevenção ostensiva de crimes ao descaso.
Em resumo, o efeito prático de proposições dessa estirpe é o agravamento das tensões entre as forças policiais existentes, porquanto são impelidas a se digladiarem em busca por espaço. A construção de um cenário de crise institucional só serve às instituições oportunistas que, visando a açambarcar ainda maior poder, esquecem-se de que o crime organizado manter-se-á estável e, nesse período de acomodação institucional, o panorama da Segurança Pública pode piorar para todos.
Sendo para o momento, aproveitamos o ensejo para manifestar nossa estima e consideração, aduzindo que, posteriormente, apresentaremos propostas concretas sobre como o sistema de persecução penal pode ser verdadeiramente aperfeiçoado.
Atenciosamente,
RAFAEL DE SÁ SAMPAIO
Presidente da ADPJ

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