Sertão pernambucano, últimos dias de julho de 2019. Ações paralelas de policiais federais e rodoviários quase terminam em tragédia. Equipes das duas corporações resolveram desencadear, por conta e risco, operações de erradicação de maconha na mesma região, uma roça entre os municípios de Cabrobó e Salgueiro.
Enquanto policiais federais iniciam os trabalhos ainda na madrugada, os rodoviários deslocam um helicóptero para o mesmo local. O risco: do alto, na aeronave, os patrulheiros estavam prestes a confundir integrantes da PF com traficantes, o que poderia dar início a um tiroteio com desfecho lúgubre.
O episódio no Polígono da Maconha, em Pernambuco, é apenas um dos exemplos da guerra silenciosa travada entre a PF e a PRF pelo comando de investigação. Trata-se de um enredo intrincado que envolve não apenas os policiais, mas interesses do Ministério Público e do governo do presidente Jair Bolsonaro. E que está longe de um final, mesmo com decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema no último dia 10 de agosto.
Máscara Negra
Os relatos da ação desastrada no interior de pernambucano chegaram ao Máscara Negra, como é conhecido o prédio da diretoria-geral da Polícia Federal no centro de Brasília. E se espalharam em grupos de mensagens da PF e da PRF. Um documento de 13 de julho deste ano foi compartilhado por federais e patrulheiros. Assinado por Elvis Apareciso Secco, diretor de Investigação e Combate ao Crime Organizado, o texto deixa clara a desavença entre os grupos de policiais -principalmente por causa da divulgação nas redes sociais das operações da PRF.
“No que se refere a dados estatísticos que estão sendo equivocadamente absorvidos por outras instituições e utilizados para inflar números que não refletem a realidade, solicito que a partir de agora todas as prisões e apreensões de crimes de atribuição da PF sejam repassadas a unidades da PF, sendo que, somente na hipótese de não atendimento de apoio solicitado, seja o trabalho repassado a outras instituições”, diz a nota, que foi enviada inicialmente a superintendentes regionais e chefes de delegacias descentralizadas.
O trecho mais enfático do documento de Secco vem depois: “Na atual conjuntura, a defesa da instituição e o cumprimento das diretrizes estabelecidas pelo órgão central faz-se mister para conter o avanço das instituições que tentam ir além de suas atribuições invadindo área de atuação exclusiva da Polícia Federal”. A carta foi distribuída um mês antes do julgamento no STF sobre a portaria do ex-ministro Sérgio Moro que deu poder à PRF
Associações sindicais
O Supremo referendou, por 6 a 4, a portaria do Ministério da Justiça, determinando que a Polícia Rodoviária Federal passasse a participar de operações de investigação e inteligência, como estabeleceu Moro. A ação foi proposta pela Associação Nacional dos Delegados da PF, que defendeu a inconstitucionalidade do texto de Moro. O artigo 144 da Constituição estabelece que cabe “à PF e à Polícia Civil exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária, dentre as quais se inserem as atividades investigativas e persecutórias de ilícitos penais”. Caberia à PRF o patrulhamento ostensivo das rodovias federais.
Os ministros desconsideram parecer da Procuradoria-Geral da República, que pediu o fim dos efeitos da portaria. O argumento de Augusto Aras, que deu razão ao pedido da associação de delegados, é de que há risco de a portaria violar o artigo da Constituição. E, pior, eventualmente anular provas contra criminosos. “O parecer de Aras era claro. A portaria é uma aberração, mas o Supremo deixou tudo mais confuso”, diz um delegado federal do Rio de Janeiro, que preferiu não se identificar.
Há um choque de versões que extrapola as associações e chega ao dia a dia das corporações. Entre as acusações dos delegados, os rodoviários querem deixar de fazer o trabalho ostensivo nas ruas para ganhar o status de “investigadores” sem ter capacitação para tal atividade. Um texto circula nas redes sociais de delegados questiona a falta de patrulhamento na BR-277, próximo a São José dos Pinhais (PR). Em 3 de agosto um engavetamento com 22 carros provocou a morte de 8 pessoas. “Desde o fim do ano passado, PRFs têm sido deslocados de suas funções de patrulhamento das rodovias para ações de suporte ao MP e atribuições de investigação fora de sua área comum de atuação.”
Os ataques abaixo da linha da cintura dão o tom da disputa entre as corporações. “Mesmo com o fato inquestionável da necessidade de aumento de PRFs, fazer relação entre acidentes específicos e a falta de patrulhamento não é real. É injusto”, diz Marcelo Azevedo, vice-presidente da Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais (FenaPRF). Levantamento compartilhado pela entidade com a reportagem mostra que houve queda de 38,1% das mortes em acidentes de trânsito nas rodovias federais na última década.
“A PRF vem avançando sobre atribuições que não são dela. Seja desempenhando efetivamente atividades investigativas, seja realizando atividades fora das estradas federais. Essas atividade já são desempenhadas legalmente por outros órgãos”, diz Edvandir Paiva, presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal (ADPF). Ele cita alguns pontos sobre o risco de tais “avanços”:
Legalidade de apurações. “Isso ocorreu com a operação Satiagraha, quando o STF considerou nula uma apuração por causa da participação da Abin nas investigações.”
Gastos de dinheiro público. “Dois órgãos realizam a mesma atividade para alcançar o mesmo fim, sem que isso signifique mais eficiência, colocando em risco integrantes das forças.”
Efetivo policial limitado. “Se a PRF passar a investir em atividades que não são suas, irá deixar de desempenhar em algum grau a atividade que a Constituição conferiu: patrulhamento de estradas.”
Para Paiva, a PRF cumpre a obrigação quando impede a chegada de drogas e armas pelas vias federais. “Quando ela se desvia dessa função para invadir atribuições da PF, da Receita ou das policias civis, está duplicando custos, deixando de fazer as suas próprias atribuições e impossibilitando a cooperação sadia entre os órgãos. Cooperação não é canibalizar atribuições de outras forças, mas sim, dentro das suas, ajudar o sistema de segurança pública.”
“Disputa mesquinha“
O que os delegados tratam como uma guerra de corporações, os policiais rodoviários estabelecem como algo mais banal, quase mesquinho. “Os delegados não falam pela Polícia Federal, mas os policiais federais não concordam com isso e defendem o trabalho da PRF”, diz Azevedo. No final do ano passado, em nota pública, a Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) defendeu a portaria de Moro. “Não há invasão de competência (…), a medida apenas se traduz em desburocratização e celeridade.”
Além da divisão interna, os delegados ainda enfrentam outro problema: apesar do parecer de Aras contrário à portaria, procuradores e promotores ouvidos pelo SBT News defendem a atuação da PRF. Com poder de investigação garantido pelo Supremo, o Ministério Público tem combinado operações com os policiais rodoviários. “Como eles não têm braços operacionais -e como a PF não faz tudo que eles querem-, procuradores acabam se aproveitando do efetivo da PRF”, disse um delegado que preferiu não se identificar.
“Essa disputa começou a ficar mais acirrada ainda no começo dos anos 2010 por causa de termos de cooperação entre a PRF e MP”, lembra Azevedo. E se intensificou com a divulgação dos resultados de operações da PRF, que tem usado as redes sociais com eficiência, mostrando a quantidade e os valores de drogas apreendidas. “É um erro divulgar as cifras envolvidas, pois gera cobiça, mostra o quanto o tráfico pode ser rentável. A PRF faz isso direto, a Polícia Federal, por princípio, não faz.”
Esplanada em silêncio
A cúpula da Polícia Rodoviária Federal tem defendido em reuniões do governo que a corporação não trabalha com investigações, mas compartilha informações e empresta apoio a outros órgãos. E a portaria de Moro apenas regulamentou o trabalho. Na Esplanada, há um certo silêncio sobre a queda de braço entre as corporações. É como se a disputa fosse benéfica, pois há uma corrida por mais apreensões de drogas e prisão de integrantes de quadrilhas organizadas. O trabalho é exaltado pelo presidente Jair Bolsonaro.
“É mais uma diferença do nosso trabalho. A Polícia Federal é uma instituição de Estado. A PRF se vangloria de aparecer do lado do presidente e aparentemente não vê problema em ser usada politicamente”, afirma um delegado. Azevedo, que é policial rodoviário lotado em Goiás, vê que há mais uma acusação injusta. “Trabalhos de forma ostensiva. É natural tais encontros nos deslocamentos do presidente. Isso não significa adesão. Aliás fomos e somos contrários aos projetos das reformas da Previdência e administrativa do governo.”
Como disse um policial rodoviário da cúpula da PRF, a guerra de bastidores é infinita. “É urgente que alguém do andar de cima proponha uma trégua.”
O policial fardado deve exercer sua atividade de forma ostensiva, pois tem a função pública de promover atos para evitar que os crimes aconteçam, preventivamente, e não fazer o papel do policial judiciário que investiga os crimes que já ocorreram, de forma repressiva.