Servidor público indiciado por lavagem deve ser afastado

 
Bruno Titz de Rezende

O indiciamento é o ato pelo qual o delegado de polícia exterioriza o seu convencimento, com base em toda prova constante nos autos do inquérito policial, sobre quem é o autor ou partícipe do delito investigado – o indiciado é formalmente indicado como o autor ou partícipe da infração penal. O indiciamento não é ato arbitrário ou sujeito ao talante exclusivo da autoridade policial.

As Polícias, tanto a Federal como a Civil, são órgãos da União e dos estados federados, pertencendo, assim, à administração pública direta. Daí decorre sua submissão aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (caput do artigo 37 da Constituição Federal).

Como muito bem elucida Sérgio Marcos de Moraes Pitombo:

“Indiciar alguém, como parece claro, não deve surgir qual ato arbitrário, ou de tarifa, da autoridade, mas, sempre legítimo. Não se funda, também, no uso do poder discricionário, visto que inexiste, tecnicamente, a possibilidade legal de escolher entre indiciar ou não. A questão situa-se na legalidade estrita do ato. O suspeito, sobre o qual se reuniu prova da infração, tem que ser indiciado. Já aquele que, contra si, possui frágeis indícios, ou outro meio de prova esgarçado, não pode ser indiciado. Mantém-se ele como é: suspeito.[1]

Logo, o indiciamento é ato de livre convencimento do delegado, vinculado a toda prova existente no inquérito policial. O delegado de polícia apenas deve proceder ao indiciamento quando existente prova suficiente[2] de que o investigado é autor ou partícipe de determinado delito, devendo consignar os motivos[3] de tal convicção no próprio despacho de indiciamento.

A Lei de Combate à Lavagem de Dinheiro, em seu artigo 17-D, determina que o servidor público indiciado, por qualquer um dos crimes previstos pela Lei 9.613/98, seja afastado, sem prejuízo de sua remuneração e demais direitos previstos em lei, até que o juiz competente autorize o seu retorno.

Inicialmente, é bom que se saliente que o dispositivo não tem por fundamento um juízo de culpa antecipado sobre o indiciado, o que estaria em descompasso com o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. Na verdade, o artigo 17-D da Lei 9.613/98 prevê uma medida cautelar visando a imprescindível preservação de provas.

Outro equívoco é sustentar que o afastamento cautelar de servidor público só possa ser determinado pelo Poder Judiciário. Ou seja, estaria incluído na reserva constitucional de jurisdição. A reserva constitucional de jurisdição consiste na exigência constitucional da prévia e exclusiva manifestação do Poder Judiciário para a prática de determinados atos. O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de analisar o instituto:

“O postulado da reserva constitucional de jurisdição importa em submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita determinação constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem se haja eventualmente atribuído o exercício de ‘poderes de investigação próprios das autoridades judiciais’. A cláusula constitucional da reserva de jurisdição – que incide sobre determinadas matérias, como a busca domiciliar (CF, art. 5º, XI), a interceptação telefônica (CF, art. 5º, XII) e a decretação da prisão de qualquer pessoa, ressalvada a hipótese de flagrância (CF, art. 5º, LXI) – traduz a noção de que, nesses temas específicos, assiste ao Poder Judiciário, não apenas o direito de proferir a última palavra, mas, sobretudo, a prerrogativa de dizer, desde logo, a primeira palavra, excluindo-se, desse modo, por força e autoridade do que dispõe a própria Constituição, a possibilidade do exercício de iguais atribuições, por parte de quaisquer outros órgãos ou autoridades do Estado.” (STF. Pleno. MS nº 23.452/RJ. Relator: Celso de Mello)

Não existe no texto de nossa Constituição Federal qualquer dispositivo que exija a manifestação do Poder Judiciário para o afastamento de servidor público. Por outro lado, o artigo 17-D, ou mesmo a Lei 9.613/98, em nada obsta o acesso aos órgãos jurisdicionais.

Desta forma, não há que se falar em inconstitucionalidade no afastamento de servidor público sem a participação do Poder Judiciário ou mesmo violação do artigo 5º, inciso XXXV, da Carta Federal. Tanto é assim que leis em vigor há mais de vinte anos preveem o afastamento administrativo de servidor público, sendo rotineiramente aplicadas sem qualquer oposição.

A Lei 4.878/65[4], usada pela Polícia Federal em seus procedimentos disciplinares, estabelece a suspensão preventiva obrigatória do policial federal durante a apuração de transgressões disciplinares.[5] A Lei nº 8.112/90[6] prevê, para evitar a influência na apuração de infrações administrativas, o afastamento de servidor público do exercício do cargo pela própria autoridade instauradora de processo disciplinar. E a Lei nº 8.429/92[7] também estabelece, no parágrafo único de seu artigo 20, o afastamento administrativo de servidor público.

Maior razão se dá ao legislador ao tornar obrigatório o afastamento do servidor público (sem qualquer prejuízo a este) para a preservação de provas da investigação criminal.

Vladimir Passos de Freitas, ao se manifestar pela legalidade do dispositivo, aponta: “A inovação legal visa pôr fim à usual prática de permanecer o servidor acusado exercendo suas funções anos a fio, até que termine a ação penal ou o processo administrativo, passando à sociedade a mensagem de que o crime compensa”[8].

Por todo o exposto, o artigo 17-D da Lei 9.613/98 é harmônico com nosso ordenamento jurídico. Assim, a partir da vigência da Lei 12.683/12, o indiciamento pelo crime de lavagem de dinheiro tem como consequência, para salvaguardar as provas do crime, o afastamento cautelar do servidor público (é imprescindível que a respectiva Corregedoria seja cientificada do indiciamento para efetivar o disposto na lei).

[1]PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Mais de cento e vinte e seis anos de inquérito policial – perspectivas para o futuroIn: Revista ADPESP, Ano 19, março de 1998. Disponível em: http://www.sergio.pitombo.nom.br/files/word/mais_de_cent.doc. Grifamos.

[2]PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. FALSUM. INDICIAMENTO PRECIPITADO. INQUÉRITO. I – Se há indícios da prática de crimes, incabível o trancamento do inquérito. II – Todavia, o indiciamento só pode ser realizado se há, para tanto, fundada e objetiva suspeita de participação ou autoria nos eventuais delitos. (STJ, 5ª turma, HC nº 8466/PR, relator: Ministro Félix Fischer). Grifamos.

[3]A Polícia Federal possui Instrução Normativa determinando que o auto de qualificação e interrogatório (peça na qual são colhidas as respostas do indiciado sobre o fato investigado) seja precedido de despacho fundamentado, no qual constarão os motivos de fato e de direito que levaram a autoridade policial a determinar o indiciamento do investigado. A doutrina também aponta a necessidade da exteriorização dos motivos do indiciamento: Sérgio Marcos de Moraes Pitombo (ibidem), Mário Sérgio Sobrinho e Marta Saad (apud NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 5ª ed. São Paulo: RT, 2006, p. 95).

[4]A Lei nº 4.878/65 foi parcialmente recepcionada pela Constituição de 1988. O STF decidiu pela não recepção dos artigos 43, V, VI, XXXV (RE nº 458.555/CE).

[5]Art. 57 § 4º A suspensão preventiva de que trata o parágrafo único do art. 51 é obrigatória quando se tratar de transgressões aos incisos IX, XII, XVI, XXVIII, XXXVIII, XL, XLVIII, LI, LVIII e LXII do art. 43, ou no caso de recebimento de denúncia pelos crimes previstos nos arts. 312, caput, 313, 316, 317 e seu § 1º, e 318 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal)”.

[6]Art. 147 – Como medida cautelar e a fim de que o servidor não venha a influir na apuração da irregularidade, a autoridade instauradora do processo disciplinar poderá determinar o seu afastamento do exercício do cargo, pelo prazo de até 60 (sessenta) dias, sem prejuízo da remuneração.”

[7]Art. 20. A perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória. Parágrafo único. A autoridade judicial ou administrativa competente poderá determinar o afastamento do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à instrução processual.

[8]Lei de Lavagem de Dinheiro é um passo à frente. Revista Consultor Jurídico, 15 de julho de 2012. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-jul-15/segunda-leitura-lei-lavagem-dinheiro-passo-frente.

 é delegado de Polícia Federal. Graduado e mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Diretor Jurídico do Sindicato dos Delegados de Polícia Federal do Estado de São Paulo e presidente do Conselho Editorial da Revista Criminal — Ensaios sobre a atividade policial.

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